Dizem que o esporte tem o poder de mudar vidas. O que pode soar como clichê para muitas pessoas é uma verdade extraordinária a outras, como Marzieh Hamidi e Ahmad Badreddin Wais. Foram os esportes que lhes deram um verdadeiro refúgio dos traumas e tribulações de uma vida marcada pela guerra, em meio a fatores absolutamente fora de seu controle.
O que lhes deu um mero indício de autonomia sobre seus destinos foi justamente o esporte, combinando trabalho duro, força de vontade, disciplina e paixão pelo seu ofício.
Hamidi e Wais são refugiados, entre as dezenas de milhões de pessoas espalhadas por todo o mundo após serem expulsas de seus lares e terras pela crueldade humana ou pela força da natureza.
No Dia Mundial dos Refugiados, comemorado em 20 de junho, ambos compartilharam suas histórias inspiradoras à agência de notícias Anadolu – histórias que ocorreram a milhares de quilômetros de nós, mas que demonstram o poder da resiliência do espírito humano.
Marzieh Hamidi: ‘Nascida refugiada’
Hamidi nasceu no Irã, em uma família de refugiados afegãos, vinte e um anos atrás. Foi no país que recebeu sua família onde conheceu o taekwondo, esporte que lhe consagrou como uma estrela ascendente.
A atleta e sua família regressaram ao Afeganistão em 2019, com imensurável esperança. O destino, no entanto, tinha outros planos.
“Nasci no Irã como refugiada. Quando voltei ao meu país, voltei com esperanças. Disse para mim mesmo: Vou voltar para minha terra. Vou fazer parte da equipe nacional de meu país”, comentou Hamidi à Anadolu. Entretanto, em agosto de 2021, dois anos após seu retorno, o grupo fundamentalista Talibã retomou o poder no Afeganistão.
Hamidi vivia na capital, Cabul, e logo se deparou com a dura escolha de deixar sua terra.
“Deixei o Afeganistão por causa do Talibã. Eles disseram que as mulheres não poderiam mais estudar ou fazer o que quisessem da vida. Disseram que as mulheres deveriam ficar em casa … tudo era motivo de castigo”, lamentou a atleta.
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Seu técnico não tardou em adverti-la que não poderiam seguir com o treinamento. Hamidi viu mulheres impedidas de exercer sua vocação e como colegas esportistas foram forçadas a abandonar tudo aquilo que amavam.
“Saí na rua e vi o Talibã. Foi muito doloroso para mim porque, dia após dia, vi o que estava acontecendo com meu país e com meu povo”. Alguns meses depois, Hamidi foi evacuada à França. Hamidi é beneficiária de uma bolsa condecorada a refugiados pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) e fará parte da Equipe Olímpica de Refugiados nas próximas Olimpíadas em Paris, cidade onde vive hoje, em 2024.
Sua jornada no taekwondo começou com um pequeno empurrão encorajador de um amigo de colégio no Irã. “Quando comecei a praticar o taekwondo, senti que era mais do que uma diversão para mim. Senti que algo acontecia com meu corpo, algo que tinha a ver com a dor e o estresse”.
“Ganhei uma medalha de prata na primeira luta. Meu técnico disse: se continuar assim, terá um bom futuro no taekwondo. Foi aí que escolhi ser uma atleta profissional e comecei a dar toda minha vida ao taekwondo”.
Hamidi se considera particularmente bem afortunada por ter uma família que a apoia e tem orgulho de suas conquistas.
Sua meta agora é os Jogos Olímpicos de Paris, algo que se tornou possível pela formação da Equipe Olímpica de Refugiados, iniciativa do COI para trazer à luz a crise global representada pelo deslocamento forçado. “Vim à França para isso. Deixei meu país porque quero disputar as Olimpíadas”, disse a atleta que compete na categoria até 57 quilos. “Quero uma medalha para mim, para meu país e para todas as mulheres do Afeganistão. Quero também ajudar o povo, os refugiados e, sobretudo, as mulheres de meu país e de todo o mundo”.
Ao manter sua rotina de treinamento em Paris, Hamidi comentou sobre os desafios que ela e outras atletas refugiadas enfrentam em sua trajetória. “Não é fácil deixar sua casa, não é fácil recomeçar do zero e reconstruir sua vida”, reiterou. “Como atleta e refugiada, quero ir além da Europa para competir no meu esporte, mas muitos países me pedem visto e, quem sabe, não aprovem minha entrada. Esse é um problema que enfrento como refugiada”.
Para o futuro, Hamidi guarda esperanças de, um dia, regressar a sua terra. “Meu coração e minha alma estão no Afeganistão. Eu represento meu país, mas muitas pessoas não gostam de mim porque eu sou contra o Talibã. Então luto pelo time dos refugiados, que é como se fosse meu país. Sim, eu represento todos os refugiados”.
Ahmad Badreddin Wais: ‘Vivendo o sonho olímpico’
Wais, de 32 anos, competidor pelo ciclismo de estrada, nasceu em Aleppo, em um tempo remoto no qual o noroeste da Síria conhecia a paz. O atleta estava na universidade quando a guerra civil tomou o país, em 2011, após o regime de Bashar al-Assad reprimir com violência protestos populares pela democracia. O conflito, desde então, destruiu incontáveis vidas e deixou para trás uma terra arrasada.
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Três anos depois, Wais se deparou sem opção senão deixar a Síria, ao recorrer à perigosa jornada por mar até a Grécia. Eventualmente, conseguiu status de refugiado na Suíça, onde vive há oito anos.
Wais concorreu em quatro Campeonatos Mundiais e conquistou a bolsa para refugiados do COI, quando se classificou para os Jogos Olímpicos de Tóquio de 2020 – realizados em 2021 devido à pandemia de covid-19. “Foi muito especial. Sempre sonhei com isso e estava enfim vivendo meu sonho”, declarou o atleta, que competiu no evento individual contra o relógio, em entrevista à agência Anadolu.
“Como atleta refugiado, você não tem um país ou federação que o represente. Com o time olímpico de refugiados, porém, encontramos apoio. Isso me ajudou bastante. Para os Jogos Olímpicos é preciso estar com a cabeça no lugar”.
Wais reiterou que deixar sua terra rumo a um continente estranho foi um enorme risco, mas um risco que foi obrigado a assumir. A vida na Suíça é desafiadora, sem família ou amigos e com uma enorme barreira representada pelo idioma. Ainda assim, Wais mantém um ponto de vista positivo sobre as possibilidades do esporte: “Praticar esportes mudou as coisas para mim, melhorou minha saúde e possibilitou que eu fizesse novos amigos. O esporte dá novo equilíbrio a nossas vidas”.
Parte de sua família ainda está na Síria, incluindo sua mãe, que não vê desde que deixou o país. “Espero poder voltar para Aleppo um dia”, enfatizou o atleta.
Por enquanto, sua meta são os Jogos Olímpicos de Paris, onde espera deixar sua marca em uma modalidade esportiva que lhe permitiu tamanha esperança e superação.
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