Despachantes empresariais ou cientistas desviados?

Será que o contador de maneira estrutural, está desviado das suas funções específicas da profissão, enquanto acaba atuando como um despachante em muitos dos processos que desenvolve? 

Disclaimer: Não estou criticando o papel importantíssimo de ajudar o empreendedor a enfrentar a dificuldade burocrática e regulatória no país, para abrir ou manter um negócio, pois este é obrigado realmente a ter intermediários atuando, que sem um especialista não conseguiria navegar num mar de burocracia e complexidade brasileiras. 

VEJA BEM… NÃO É ASSIM

Mas quem achar que não é bem assim, pois em outros países também há burocracia, me apresente por favor onde está o setor fiscal de uma empresa contábil estrangeira? Eu já visitei algumas na Suíça, França, Alemanha, Portugal e nem mesmo na Estônia (ex colônia soviética na década de 90) consegui encontrar um setor inteiro dedicado apenas a calcular, declarar e monitorar obrigações com o fisco, cada uma com uma regra, inúmeras exceções, prazos e multas diferentes.

Outro ponto que corrobora essa sensação “fisco-alienígena” brasileira, é comparar o tamanho da equipe fiscal e tributária de uma multinacional lá fora, com o que eles têm aqui no Brasil. Será que o número funcionários contadores, consultores, advogados tributaristas e auditores, que temos aqui para atende-la, é igual aos quadros de uma mesma unidade desta área mantidos no exterior? As poucas multinacionais brasileiras, com operação no exterior, sentem na pele isso, e fica patente essa diferença, chegando a ser 10 vezes menores as equipes externas que as em solo tupiniquim.

SENTA QUE LÁ VEM TRETA…

Esse assunto sempre gera muita polemica em conversas com contadores. Em alguns (poucos), há um inconfessável sentimento meio corporativista, de que a burocracia gera empregos e oportunidades. Em outros, que mera questão de escolha e posicionamento. Os contadores (e estou aqui incluindo colaboradores que trabalham em escritórios contábeis e ou internos em companhias) poderiam simplesmente se posicionar melhor e escolher ser muito mais um conselheiro estrategista no seu dia a dia.

UMA QUESTÃO DE ESCOLHA…

Será mesmo? Após esse prólogo que fiz, seria apenas uma questão de escolha e posicionamento? Um profissional contábil teria como escolher não gastar tanto tempo fazendo uma DCTF, EFD-REINF, GIA-ST, RAIS, ECD, ECF, EFD ICMS, EFD CONTRIBUIÇÕES, DIMOB, DIRF, DIMED, DECRED, E-FINANCEIRA, EFD-REINF, DCTF WEB, DASN, E-SOCIAL, BLOCO K DA EFD ICMS, DECLARAÇÕES MENSAIS AOS mais de 5600 MUNICÍPIOS e 27 ESTADOS, além de declarações À CVM, ANS, SUSEP, SEBRAE, BANCO CENTRAL, e muitas outras que nem me lembro agora, além de calcular PIS, COFINS, IPI, IRPJ, CSSL, ISSQN, IRRF, DIFAL, ICMS-ST, DIFERENCIAL DE ALÍQUOTA, COMPLEMENTO DO SIMPLES NACIONAL, para se dedicar a estar mais próximo do cliente ou do gestor, de forma escalável?

Ah já ia esquecendo, ele também precisaria encontrar tempo, para ser mais consultor enquanto estiver orientando o empreendedor sobre NCM, CST, CSOSN, CFOP, TIPI, CEST, PIS COFINS MONOFÁSICO, REDUÇOES DE BASE DE CÁLCULO DO ICMS, ISENCÕES, SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA e GNRE, dentre outros “poucos” detalhes da já septuagenária CLT.

É DE OPORTUNIDADES QUE SE FAZ UM NEGÓCIO

Mas é inegável que há uma gigante oportunidade de negócios na área de apoio aos pequenos, médios e grandes negócios. Há pesquisa do Sebrae, bastante profunda, que mostra o quanto as empresas estão sedentas de um contador muito mais próximo, estratégico e atuante no desenvolvimento dos negócios.

Estamos ainda numa transformação da dinâmica da contabilidade, com inúmeras startups promovendo uma mudança radical na matriz de geração de riquezas, necessitando de técnicas novas formas de mensuração de patrimônios intangíveis e abstratos.

Também uma enorme mobilidade empresarial, por não mais se necessitar estar estabelecido geograficamente num país ou localidade, para se tocar e manter um negócio de impacto global, com funcionários espalhados por muitos países e seu serviço rodando totalmente na nuvem.

Nesse ambiente, é ainda mais importante e impactante, o papel do profissional contábil, com todo seu repertório e conhecimento, no apoio e redução da mortalidade empresarial. Quanto a isso, é o professor César Abicalaffe, e foi Antônio Lopes de Sá, ambos membros da academia brasileira de ciências contábeis, grandes defensores de um papel de maior protagonismo e impacto social e econômico do profissional contábil.

VISÃO DETURPADA

 Uma visão deturpada do profissional contábil, não é só no Brasil. Aqui apenas há uma hiper concentração do que já existe de burocracia e chatice “na gringa”. Fora do país, já faltam profissionais contábeis. Nossos filhos não querem nem saber de contabilidade.

A imagem do contador no Brasil está diametralmente ligada à essa burocracia no imaginário popular. Eu nunca me moldei a essa imagem. E buscando mudar essa percepção na sociedade, até mesmo escrevi livros voltados a empreenderes, estudantes e leigos, com intuito de mudar a visão que se tem do contador, e assim revelando o poder oculto da contabilidade, título homônimo de uma das obras. 

O QUE DIZER DAS NOVAS GERAÇÕES

As novas gerações não conseguem enxergar o propósito incrível na nossa profissão, que é ajudar a desenvolver negócios, gerando empregos, renda e sustentabilidade de toda uma sociedade, inclusive propiciando o financiamento do Estado para investir em educação, saúde, obras públicas e desenvolvimento do país.

Porém a saúde mental de muitos profissionais da área, está comprometida com artefatos como e-social e outras burocracias que “evoluíram” para o meio digital, e se multiplicaram como ervas daninhas no seio da nossa profissão.

DESMANCHAR NÓS … OU GERENCIAR PESSOAS?

Tenho um colega, ferrenho defensor da independência e libertação do contador dessas amarras, que coloca o problema como algo estrutural. Os contadores hoje estão em sua maioria concentrados em questões de cunho regulatório e meio que em funções de despachantes, desembaraçando um nó regulatório e burocrático, devido a anomalia do 184º pior sistema tributário do mundo e da excessiva burocracia no ambiente de negócios brasileiro, aliado a dificuldade dos profissionais em trabalhar com tecnologia e com as soft skills, tão necessárias às demandas dos tempos atuais. 

Esta é uma realidade disfuncional do Brasil em relação ao ambiente que outros contadores tem lá fora, onde em grande parte do mundo, a concentração de tempo nas tarefas eminentemente contábeis é inversamente proporcional ao tempo em que no Brasil se dedica aos assuntos burocráticos. 

E isso acaba de maneira geral, refletindo na massa dos profissionais da área, reduzindo sua capacidade de aplicar contabilidade. Uma parcela reduzida dos 500 mil profissionais do Brasil, já realiza trabalhos mais científicos, porém o grosso daqueles, acabam se dedicando a questões regulatórias e burocráticas, que nesse nível absurdo, só ocorrem no Brasil, o que colabora para uma imagem deturpada da profissão junto à sociedade. 

SER DESPACHANTE É RUIM?

 Ressalto mais uma vez que não há demérito nessas funções. Todo trabalho é digno. Porém é um desvio de finalidade. E reduz o papel que uma massa de contadores poderiam fazer para melhorar ainda mais o nível de competitividade e perenidade das pequenas empresas do país. Afinal facilita pra que elas abram as portas e atendam o fisco, porém as abandonam à própria sorte, e míopes, vão andando rumo às tristes estatísticas de “mortalidade empresarial infantil.” Pois não é o metiê da massa de contadores no Brasil, exercer a ciência da riqueza e da prosperidade apoiando na gestão dos pequenos e médios negócios, sob a ótica dos dados gerados pela contabilidade, hoje muitos estão como cientistas desviados do seu real objetivo profissional.

MAS FALANDO EM CONTABILIDADE. ..

E na hora de se aplicar as IFRS, NBCT`s, princípios contábeis, valuation e outras tarefas eminentemente contábeis? Como faz? Quantos por centos dos nossos profissionais estariam preparados para essas tarefas e requisitos, caso mudassem as regras tributárias no país, aproximando do que já é prática dos países da OCDE, a qual o Brasil está pleiteando fazer parte?

E para aplicar as análises dos balanços e buscar utilizar as informações contábeis para apoio na gestão empresarial? Aí o negócio pega ainda mais. Pois pouquíssimas pequenas empresas sequer sabem que a contabilidade serve pra isso, que há profissionais aptos a manejar esses dados, e grande parte dos profissionais ainda não lida no dia a dia com esse tipo de trabalho.

OU MUDA, OU MUDA:

Os empreendedores contábeis tem um papel insofismável de ajudar os profissionais contábeis a mudarem de mentalidade, evoluírem e adquirirem novas competências, pois as transformações tecnológicas e sociais, avalassadoras, que estamos tendo, em no máximo 5 anos, vão requerer competências e tarefas totalmente diferentes daquelas que hoje eles desempenham, onde o fator humano será determinante para o sucesso e perenidade desses profissionais no mercado.

AGORA É COM VOCE… O QUE PODEMOS FAZER ?

Então meu amigo contador, seja empresário contábil ou profissional lotado em escritórios contábeis ou interno em empresas, cabe a cada um de nós nos capacitar ainda mais, lutar pela transformação da nossa profissão, difundir o quão importante nosso trabalho é para a sociedade, se aliar à tecnologia, se unir e buscar mudar tanto nossa mentalidade profissional, quanto a imagem que a sociedade tem do contador, e ajudar a evoluir o nosso ambiente de negócios no país, para que possamos nos dedicar cada vez mais a apoiar o desenvolvimento pessoal, profissional, econômico e financeiro dos empreendedores.

Estamos juntos nessa luta! Boa sorte!

Fonte: Ronaldo Dias Oliveira é COO da Contadores SA, contador, escritor e empresário contábil.