“Sheik” das criptomoedas: como ex-vendedor de aquários montou um império de 100 empresas e entrou na mira da PF

CURITIBA – Francisley Valdevino da Silva, ex-vendedor de aquários e ex-empresário do ramo de marketing multinível, ouviu falar sobre criptomoedas no final de 2016 ao conversar rapidamente com um estranho em um mercado. Empolgado, alguns meses depois ele decidiu fundar a startup cripto Intergalaxy, em Curitiba (PR) – outros 100 CNPJ’s foram abertos nos anos seguintes.

Com promessas de lucros mensais de até 13,5%, algo atípico em um setor tão volátil como o de criptoativos, ele conseguiu atrair milhares de clientes em todo o Brasil, alguns deles famosos.

No final do ano passado, momento em que o Bitcoin (BTC) batia sua máxima histórica, o negócio parou de pagar os participantes. Por causa disso, Silva e seu grupo empresarial viraram alvo de cerca de 500 ações civis só em São Paulo e no Paraná.

Um levantamento feito pelo InfoMoney CoinDesk nos tribunais de Justiça mostra que os valores somados das ações chegam a R$ 100 milhões. Como alguns casos estão em segredo de Justiça, e há processos em outros estados, o montante pode ser ainda maior.

Todo esse imbróglio chamou a atenção das autoridades. O Ministério Público Federal do Paraná informou que há procedimentos de fato em curso. O órgão disse que não pode disponibilizar outras informações sobre os potenciais investigados até que eventuais denúncias sejam formalizadas e ajuizadas. A Polícia Federal do Paraná e a Polícia Civil de São Paulo também estão investigando o caso, segundo matéria publicada nesta semana pelo jornal O Globo.

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Como funciona o negócio?

Silva construiu um grupo empresarial transnacional composto por cerca de 100 empresas no Brasil e no exterior. As principais empresas são as seguintes: Rental Coins Tecnologia da Informação LTDA, Intergalaxy Holding SA, ITX Administradora de Bens LTDA e Interag Administração de Fundos LTDA. Em algumas, sua mãe aparece como sócia. Em suas comunicações, o conglomerado se identifica como “grupo Interag”.

No geral, essas pessoas jurídicas oferecem serviços de intermediação na aquisição de criptoativos, aluguel de criptomoedas, armazenamento de moedas, negociação, gestão de carteiras e exchange. Dois dos carros-chefes são a emissão de stablecoins próprias supostamente lastreadas em algum ativo do mercado tradicional, como dólar, real, ouro e prata, e locação de cripto.

Na prática, os clientes adquirem essas stablecoins (algumas delas são a “Zelts Gold”, a “Zelts Silver” e a “Upper Dollar”) e as enviam para a Rental Coins, que fica com os ativos por 12 meses e paga juros mensais. Foi isso que fez um dos clientes da empresa, que pediu para não ter o nome revelado. Ele disse que conheceu o negócio no final de 2020 por intermédio de um amigo, e fez um aporte inicial de R$ 1.000 com a promessa de receber 6% todos os meses.

“No final de 12 meses, os R$ 1.000 viraram R$ 1.700. Concluí que o serviço funcionava e fiz um novo contrato de R$ 30 mil em outubro de 2021, fracionado nas stablecoins deles lastreadas em dólar, ouro e libra e em outras criptomoedas. Eles pagaram os dois primeiros meses e depois impediram os saques”, disse o cliente, citando que a Rental Coins nunca comprovou o lastro das moedas criadas. Empresas emissoras de stablecoins costumam divulgar seus balanços e contratar auditorias externas para confirmar suas reservas. Não é o caso do grupo.

Na plataforma de defesa do consumidor Reclame Aqui, a Rental Coins tem cerca de 1.300 reclamações. Nas mensagens, os clientes citam falta de pagamento, descumprimento de contrato, propaganda enganosa, fraude e golpe. Em 2021, segundo parecer jurídico que a reportagem teve acesso, o serviço de locação de criptoativos do conglomerado atraiu pouco mais de 21 mil locadores e gerou quase 100 mil contratos.

Clientes famosos e aporte milionário

Entre as pessoas supostamente lesadas pelo grupo estão a modelo Sasha Meneghel, filha da apresentadora Xuxa, e o marido dela, João Figueiredo. Eles alocaram R$ 1,2 milhão no negócio. Em abril deste ano, após não conseguirem reaver o valor, entraram com uma ação na Justiça do Paraná.

Ambos conheceram Silva – um cristão fervoroso, segundo depoimento dado por um amigo dele ao jornal O Globo – em um templo religioso. O caso está em segredo de Justiça e a reportagem não localizou a defesa do casal.

Membros e igrejas também resolveram apostar na Rental Coins. A Igreja Evangélica Comunidade das Nações LTDA, em Fortaleza (CE), celebrou um contrato de R$ 20 milhões com o conglomerado, segundo processo que a reportagem teve acesso. Em troca, a empresa de Silva deveria pagar juros de 13,5% ao mês. Nenhuma parcela foi paga, e a Comunidade das Nações entrou com uma ação na 17ª Vara Cível da Comarca de Curitiba.

Um acordo foi formalizado entre as duas partes em março deste ano. A Rental Coins, conforme o termo assinado, se comprometeu a dar uma entrada de R$ 3,1 milhões, transferir um imóvel de R$ 1,6 milhão e pagar o restante da dívida em parcelas. Uma aeronave foi alvo de arresto judicial para garantir o pagamento.

Em nota, a defesa da igreja disse que o “Sr. Francis somente pagou a entrada do acordo” e não depositou nem a primeira parcela. Em maio, o descumprimento do acordo foi informado à Justiça de Curitiba.

Opinião de advogados

A reportagem conversou com alguns advogados que defendem clientes com dinheiro preso no grupo. “Não temos informações de que a operação da Rental Coins seja de fato fraudulenta. A operação de ‘locação’ de criptoativos pode ter sido estruturada para permitir que eles operassem como ‘short sellers’ (venda a descoberto) no mercado de criptoativos, apostando que o mercado iria cair e eles iriam ganhar dinheiro. Isso não é ilegal, mas é preciso atender à regulação financeira”, disse Alceu Eilert Nascimento, advogado do escritório Demeterco Sade Advogados.

“O que temos é uma situação de não pagamento de aluguéis e um produto financeiro que está passando fora da regulação financeira padrão. Os nossos pedidos na Justiça se concentram em obter transparência no negócio e forçar que eles apresentem a real situação e solvência da empresa”, completou Nascimento.

Já o advogado Jeferson Brandão, representante de um grupo de 250 clientes, disse que a empresa pode ter passado por dificuldades de gerenciamento. “Eu acredito que problemas de gestão, megalomania e ostentação drenaram todos os recursos dos clientes. E o negócio também pode ter características de um esquema Ponzi, pois depende da entrada de outros investidores para pagar os investidores atuais.”

O que diz a empresa?

Em nota, Silva disse que o grupo encontrou “anormalidades internas” e “falhas” no final do ano passado e iniciou uma reorganização de gestão administrativa, financeira e tecnológica para solucionar os problemas.

“Os erros cometidos por gestões passadas, que inclusive causaram enorme abalo às estruturas, ocasionaram atrasos nos pagamentos e inadimplementos contratuais. Com isso, foram tomadas medidas urgentes para atenuar os impactos causados aos clientes”.

Ele falou que a empresa fez um plano de reestruturação, aceito por parte dos clientes. Essas pessoas, disse, vão voltar a receber em outubro deste ano. Outros decidiram rescindir seus contratos por meio de acordos extrajudiciais e o restante recorreu à Justiça.

A reportagem questionou a empresa sobre as ações civis e as investigações da PF e do MPF. Além disso, perguntou se poderia de alguma forma confirmar as reservas de metais preciosos e moeda fiduciária que afirma ter para dar suporte às suas stablecoins. Para cada stablecoin “Zelts Silver”, por exemplo, o grupo afirma que tem 1g de prata bruta guardada. O conglomerado não respondeu a essas perguntas.

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