Sócrates. Jogador comemora gol pela seleção brasileira, em 1985 | Foto de Anibal Philot / Agência O Globo
Havia mais de 1 milhão de pessoas reunidas no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, na tarde daquela segunda feira. Com o trânsito congestionado por causa da multidão, Sócrates largou seu carro perto de uma estação do metrô e pegou uma composição rumo ao centro da cidade, ao lado de sua mulher, Regina, e dos colegas Casagrande e Wladimir. Os outros passageiros mal podiam acreditar que ali estava o capitão da seleção brasileira, rindo com os amigos, a caminho do último comício das “Diretas Já”, no dia 16 de abril de 1984.
‘Doutor Sócrates’: Biografia lançada no exterior em 2017 chega ao Brasil
Ao chegar, o ídolo dos gramados atravessou a aglomeração de faixas exigindo a realização de eleições diretas para presidente da República, após 20 anos de ditadura, e subiu os degraus do palco onde discursavam personalidades a favor do movimento. Sócrates vinha negociando sua ida para um clube da Itália. Mas, no palanque, contou ao mestre de cerimônias Osmar Santos que podia mudar de ideia, com uma condição. Foi quando Santos puxou o meio-campista e, com o microfone, perguntou: “Diga de novo, doutor, você vai para a Itália ou não?”.
“Se a emenda Dante de Oliveira passar na Câmara dos Deputados e no Senado, eu não vou embora do meu país”, respondeu ele, com determinação na voz. Houve uma explosão no público, que começou a vibrar e a gritar: “Vai ficar! Vai ficar!”.
Sócrates. O jogador (no centro) durante comício pelas “Diretas Já”, em 1984 | Foto de Antonio Carlos Piccino/Agência O GLOBO
A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 05/1983, apresentada pelo deputado federal Dante de Oliveira (PMDB-MT), tinha por fim reinstaurar a eleição direta para presidente, alterando a Constituição Federal de 1967, outorgada pela ditadura. Em 1984, os generais no comando haviam concordado com a volta da democracia, mas queriam controlar o processo. Não desejavam que o primeiro líder civil do Brasil em 20 anos fosse escolhido pelo povo, mas, sim, por um colégio eleitoral cheio de parlamentares que apoiavam os militares. Surgiu, então, o movimento pelas “Diretas Já”, que levou milhões de pessoas às ruas em março e abril de 1984. Muitas personalidades tomaram parte. No futebol, o mais atuante foi Sócrates.
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Perto do aniversário de dez anos da morte do jogador, neste sábado, chega finalmente ao Brasil a biografia “Doutor Sócrates”, escrita pelo jornalista escocês Andrew Downie e lançada, no exterior, em 2017. O livro narra a trajetória do paraense radicado em São Paulo que largou a medicina para se tornar gênio da bola e foi um dos craques da mágica seleção brasileira na Copa do Mundo de 1982, na Espanha. Mas a publicação também dá devido destaque à vida do atleta fora dos gramados. Diferentemente da posição assumida até hoje pela maioria dos ídolos desse esporte no Brasil, que preferem a omissão, Sócrates fazia questão de expor suas opiniões políticas a favor da democracia e da liberdade.
Faixa da Democracia Corintiana em final do Campeonato Paulista de 1983 | Foto de Olivio Lamas/Agência O GLOBO
“Não adianta nada ser um ídolo, uma pessoa pública, se não usar isto em benefício da sociedade”, disse ele numa entrevista ao GLOBO publicada no dia 9 de janeiro de 1984. “E eu pretendo fazer isto de maneira mais intensa, participando politicamente, me envolvendo com áreas fora do futebol, enfim, procurando ser útil à coletividade.”
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Não era nada fácil. O Brasil estava se redemocratizando, mas o autoritarismo estava entranhado. Quando Sócrates e seus parceiros no Corinthians criaram, em 1981, a Democracia Corintiana, não faltou controvérsia. Crítico da ditadura, o movimento também pedia mais participação de jogadores e equipe técnica nas decisões do clube. Logo, o jogador e seu grupo se tornaram alvo de setores da imprensa e de dirigentes de clubes para quem aquele anseio por participação representava ameaça. Ainda assim, a Democracia Corinthiana foi uma realidade durante anos e, em 2020, sua essência foi resgatada por torcedores que tomaram as ruas de São Paulo para protestar contra o governo Bolsonaro.
“Foi o grande sonho. Todos os envolvidos no futebol, do diretor ao massagista, tinham voto nas questões coletivas, como calendário, folgas, horário de treinos. Nas funções do treinador, não inteferíamos, mas quando a gente sentia necessidade de contratações, a diretoria apresentava uma lista tríplice para votação. O Leão foi escolhido assim”, contou Sócrates numa entrevista em 2004. “No Brasil, todo mundo entende de futebol, e pouca gente entende de política. Discutir política através do futebol é uma forma de mobilizar. Neste país, jogador é mais ouvido do que presidente”.
Sócrates com Fernando Henrique Cardoso, em campanha para prefeito de São Paulo, em 1985 | Foto de Antonio Luiz Silva/Agência O GLOBO
Também chamado de Magrão, Sócrates foi uma voz diferente nos vestiários desde que começou a despontar. Em 1977, quando estava no sexto ano da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP, teve que escolher entre o jaleco e as chuteiras. Na época, ele já atuava pelo Botafogo de Ribeirão Preto (fez um gol histórico, de calcanhar, contra o Santos), mas perdia muitos treinos devido aos estudos. Fez a opção pelo esporte pensando que poderia se tornar médico quando se retirasse dos gramados. A partir daí, a ascensão aconteceu rapidamente. Contratado pelo Corinthians, ele chegou à seleção brasileira em 1979. Mas não se deslumbrou.
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“Lógico que fiquei satisfeito. Mas não estou deslumbrado. Extraordinário nâo é ser convocado para a seleção. Extraordinário é ser campeão mundial. E na vida, pelo amor de Deus, é muito mais extraordinário, por exemplo, ter um filho. E eu já tenho dois e vem um terceiro pelo caminho. Isso sim me deslumbra”, afirmou ele, na época.
Seu estilo polido em campo e seus passes precisos foram fundamentais na seleção. O elenco, formado por outros craques como Zico, Falcão e Júnior, encantou o mundo na Espanha, mas perdeu nas quartas de final para a Itália. Em 1984, Sócrates foi transferido para a Fiorentina, na Itália, decepcionado após a emenda que pedia eleições diretas ter sido rejeitada pela Câmara dos Deputados. Mas não ficou nem um ano na Europa, retornando ao Brasil para jogar no Flamengo após recusar ofertas polpudas de times como o Roma.
Carpegiani, Zico, Sócrates e Falcão durante apresentação da seleção, em 1979 | Foto de Sebastião Marinho/Agência O GLOBO
“Voltar para casa era uma necessidade”, disse o meio-campista ao desembarcar. “Um dos motivos da minha partida foi a frustração com o movimento das ‘diretas’. Aquilo era pequeno diante de tudo que deveria mudar, mas era um passo decisivo. Meu retorno foi um processo de carência e esperança. O Brasil mudou radicalmente em um ano e me identifico com esse processo”.
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Sócrates ainda seria campeão carioca pelo Flamengo, em 1986, ano em que atuou em mais uma Copa, no México, onde a seleção foi derrotada pela França. O jogador também vestiu a camisa do Santos e, novamente, a do Botafogo de Ribeirão Preto, antes de se aposentar, em 1989. Depois de deixar os gramados, ele trabalhou como cronista e comentarista esportivo e teve uma carreira de pouco brilho como treinador, à frente de equipes como o Botafogo, a LDU (Equador) e a Cabofriense (RJ).
Sócrates de Oliveira morreu no dia 4 de dezembro de 2011, devido a um choque séptico durante a terceira internação hospitalar naquele ano. Nas duas primeiras ocasiões, ele precisou de tratamento devido a hemorragia digestiva, causada pelo consumo prolongado de bebidas alcoolicas. Na terceira vez, o ex-atleta chegou ao Hospital Albert Einstein, em São Paulo, com uma intoxicação alimentar, gerada após comer estrogonofe estragado, junto com a mulher e um amigo do casal. Todos passaram mal, mas Sócrates já estava muito debilitado e não resistiu.
Ícones de diferentes esportes, como Zico, Ronaldo, Helio Castroneves e Gustavo Kuerten lamentaram. Seu irmão, Raí, que teve uma carreira brilhante no São Paulo, ressaltou a importância de Sócrates para para o futebol e o país. A passagem do ex-jogador aconteceu na madrugada do dia em que o Corinthians conquistaria seu quinto Campeonato Brasileiro. O clube divulgou uma nota de pesar, classificando o craque como “um dos maiores ídolos da história do timão” e agradeceu pelos “lindos gols, pelos toques geniais e pelo futebol magistral”.
Sócrates chutando a bola de calcanhar durante reino no Corinthians, em 1981 | Foto de Olivio Lamas/Agência O GLOBO